Crónica #4

"DivertidaMente 2": Um olhar crítico sobre as emoções e o que estas nos ensinam

Autoria: Ana Orvalho Dias, Carolina Paiva, Renata Della Torre

Edição: Carolina Paiva e Madalena Cruz

⚠️ Atenção! Esta crónica contém spoilers. Se ainda não viste o filme e tiveres interesse em fazê-lo sem quaisquer enviesamentos, deixa a leitura desta crónica para depois.⚠️

Contextualização do novo filme

O filme “DivertidaMente” (2015) veio oferecer-nos uma visão única sobre as emoções e como estas influenciam os pensamentos e comportamentos das crianças. Através da história de uma menina, Riley, apresentam-nos as emoções consideradas básicas: medo, tristeza, raiva, alegria e nojo (Oliveira et al., 2018). O primeiro filme explorou a importância das emoções desagradáveis, com Riley a aprender a necessidade de se permitir sentir tristeza em vez de a combater.

Em “DivertidaMente 2” (2024), Riley já é mais velha e encontra-se na puberdade. Aqui surgem novas representações emocionais, mais complexas do que na edição anterior do filme: ansiedade, inveja, vergonha e tédio. Este filme explora as dificuldades da auto-identidade durante a puberdade, realçando a importância de aceitar as emoções confusas e normalizar os sentimentos de ansiedade e dúvida. Ensina lições valiosas sobre a autoaceitação e a complexidade das emoções humanas para públicos de todas as idades. “DivertidaMente 2” ensina que os erros e as experiências negativas a que pessoas adolescentes estão tão propensas podem ser desconfortáveis e confusas, mas são normais e devem ser abraçadas e aceites. 

Benefícios da educação sobre as emoções e métodos de regulação emocional

As emoções têm como papel principal mobilizar os indivíduos para uma resposta rápida a situações ou pessoas, independentemente do contexto interpessoal (Oliveira et al., 2018). Com a maturação, o cérebro humano fica mais integrado, o que ajuda a tomar melhores decisões, a ter um melhor controle do corpo e das emoções, a ter um maior autoconhecimento e, por sua vez, a criar relacionamentos mais fortes e a ter mais sucesso escolar (Siegel e Bryson, 2018). Esta integração acontece quando diferentes regiões cerebrais são capazes de comunicar eficientemente entre si e cooperar na construção de funções cognitivas complexas.

O desenvolvimento estrutural e funcional do cérebro assume particular importância na adolescência. Neste período a maturação e a interação entre o Córtex Pré-Frontal (área fortemente envolvida no funcionamento executivo e tomada de decisões) e o Sistema Límbico (em especial a Amígdala, fortemente associada à sinalização da ansiedade) não ocorre de forma semelhante à das pessoas adultas. Consequentemente, esta fase pode dar azo a maiores dificuldades de regulação emocional (Pinheiro, 2018). 

A velocidade de amadurecimento do cérebro é muito influenciada pelos genes que herdamos, mas as práticas educativas quotidianas têm a possibilidade de influenciar uma melhor integração de todas as funcionalidades do cérebro. Desta forma, as pessoas com responsabilidades parentais têm um papel fundamental na autorregulação das crianças, podendo fazer muito para proporcionar às crianças ao seu cuidado experiências que ajudarão a desenvolver um cérebro resistente e bem integrado. O objetivo é dar-lhes ferramentas para que à medida que cresçam consigam regular-se autonomamente (Oliveira et al., 2018; Siegel & Bryson, 2018).

Para Thompson (1994), a regulação emocional ótima pode ser definida como um processo que envolve a seleção de estratégias que permitam flexibilidade, rápidas reavaliações de situações emocionalmente ativas, o acesso a uma diversidade de emoções e o alcance dos objetivos definidos. Pode também ser vista enquanto um resultado, onde o indivíduo é capaz de manter as emoções sob controle, permitindo que exista interação interpessoal, iniciativas pró-sociais, simpatia dirigida a outras pessoas, assertividade pessoal ou outros índices de um funcionamento adequado. Os défices na regulação emocional têm sido associados a sintomas de depressão, ansiedade, problemas de comportamento e comportamento agressivo, perturbação bipolar e perturbações alimentares em adolescentes que se identificam com o género feminino (Pinheiro, 2018). 

As pessoas tutoras devem aprender a educar para as emoções, pois estas são parte integrante da vida humana. Elas são as figuras significativas na vida das crianças, que “fomentam e possibilitam a maturação das competências e capacidades emocionais das crianças” (Machado & Cardoso, 2024; Ferreira & Guerreiro, 2020). No entanto, nem sempre é fácil e, por exemplo, pessoas tutoras que se identifiquem com o género masculino geralmente endossam menos práticas de orientação emocional em comparação com pessoas tutoras que se identifiquem com o género feminino (Chen, 2023). O filme “DivertidaMente 2” pode ser utilizado como uma ferramenta de sensibilização para as emoções e para a inteligência emocional, e para incentivar as pessoas a falarem sobre as suas emoções e a compreendê-las. É de extrema importância a compreensão e aceitação das emoções, de forma a promover o desenvolvimento de inteligência emocional (Kanjilal et al., 2019). Esta torna-se particularmente difícil quando estamos perante emoções negativas, que desempenham um papel crucial no desenvolvimento emocional das crianças, mas que são vistas como indesejadas e são mais dificilmente aceites. Experienciar emoções como a tristeza, raiva ou medo permite que as crianças desenvolvam a capacidade de lidar com a adversidade e de superar desafios emocionais. Ao aprender a lidar com as emoções negativas de maneira saudável, as crianças desenvolvem uma compreensão mais profunda de si mesmas e do mundo ao seu redor, preparando-se para uma vida emocionalmente equilibrada e enriquecedora. É muito importante que as pessoas com responsabilidades parentais normalizem as emoções negativas e que lhes expliquem que as emoções são temporárias e em constante mudança, são estados e não características de cada um de nós. As crianças devem aprender a ter consciência das suas emoções e a compreendê-las, e devem perceber que não vão ficar a sentir-se assim para sempre. Esta é uma das tarefas mais importantes das pessoas tutoras: ajudar as crianças a aprender a prestar atenção a todas as sensações, imagens, emoções e pensamentos que as afetam. Ao prestarem atenção às suas sensações físicas, as crianças ficam muito mais conscientes do que se passa no interior dos seus corpos. Reconhecer diferentes sensações como fome, cansaço, excitação e rabugice faz com que as crianças se compreendam melhor, o que acaba por influenciar as suas emoções (Siegel & Bryson, 2018).

Pontos positivos do filme

A ansiedade:

Um aspeto interessante deste filme é a possibilidade de abordar os estados emocionais de um ponto de vista externalizado, através de oito personagens distintas com as suas próprias características. A prática de externalização foi conceptualizada em 1980 no âmbito da terapia familiar e esteve sempre associada ao lúdico, através de uma prática cuidadosa e ponderada que assenta na ideia de que “a pessoa não é o problema, o problema é o problema” (Carey & Russell, 2002).

Contrariamente a outras abordagens psicológicas, o processo de externalização visa investigar de forma profunda o problema, para colocá-lo num espaço discursivo em que a família e a pessoa cliente possam desafiá-lo (Gonçalves & Henriques, 2012). No caso da psicoterapia clínica, o processo de externalização pode ocorrer através de recursos alternativos à linguagem verbal, como por exemplo, brinquedos, desenhos, fantoches e esculturas, que permitem à criança representar as suas emoções e métodos de lidar com as mesmas, ocorrendo o processo de re-autoria de suas dificuldades (Gonçalves & Henriques, 2012). Assim, esta prática permite também que se retirem rótulos que as pessoas adultas colocam frequentemente nas pessoas mais jovens e nas suas respostas emocionais, tais como os de “pessoa ansiosa”, “pessoa raivosa” ou “pessoa chorona”. Esta tendência para eliminar os rótulos reduz nas crianças o sentimento de culpa pelas suas respostas emocionais, bem como a atribuição dessa culpa a outros indivíduos (Gonçalves & Henriques, 2012).

Especificamente na representação da ansiedade, antes do jogo final do acampamento de hóquei, podemos ver que a Riley apresenta erros de processamento de informação que incluem generalização e catastrofização, associados a crenças pessoais de que “não sou boa o suficiente” (sic.) e memórias de momentos em que a sua equipa perdeu anteriormente. Neste momento, há um crescimento significativo da ansiedade face à sua performance durante o jogo.

Apesar de a ansiedade ser um estado emocional caracterizado por nervosismo, preocupação e apreensão, e por isso muitas vezes é percepcionada como negativa, esta emoção não afeta necessariamente o desempenho de modo negativo (Weinberg & Gould, 2019). As pessoas especializadas em Psicologia do Desporto têm vindo a estudar as relações entre performance e ansiedade, tendo chegado à conclusão de que a hipótese do U invertido poderá ser uma forma conveniente de entender esta relação (Weinberg & Gould, 2019). 

Esta teoria defende que, se um indivíduo exibir níveis baixos de arousal (combinação da ativação fisiológica e a interpretação desta ativação pelo atleta), terá um desempenho abaixo do esperado, como se a pessoa não estivesse suficientemente motivada para a realização de alguma atividade. À medida que o arousal aumenta, o desempenho também aumenta, até se atingir um ponto ótimo, em que um certo grau de agitação psicológica se associa a um desempenho máximo. Quando o arousal ultrapassa este ponto ótimo, estamos perante uma diminuição do rendimento, pois níveis muito altos de ansiedade causam um declínio de desempenho, conhecido como “Fenómeno da catástrofe” de Hardy (Weinberg & Gould, 2019), que é representado no filme após alguns minutos do jogo de hóquei, quando a ansiedade cresce de tal modo que a Riley acaba por se atrapalhar.


Nova fase – “Família com Adolescentes

Podemos dizer que os sintomas de ansiedade da personagem principal são precipitados pela entrada da Riley na adolescência, havendo uma mudança na etapa do ciclo vital em que esta se encontra. Nesta nova fase, existe um aumento de novidades, luta e busca por autonomia e pela definição da sua própria identidade (Alarcão, 2000). Fica claro durante o acampamento de hóquei que a Riley acaba por ilustrar estas novidades, sendo este o momento em que descobre que não estudará mais com as suas pessoas amigas, mudando-se sozinha para outra escola e ficando sozinha numa nova equipa de hóquei, o que gera na personagem uma série de inseguranças acerca do futuro, das suas relações interpessoais horizontais e de quem ela é. 

No início do filme, é deixado claro que a Riley também se encontra a passar por um período de mudança na sua relação com os seus pais. Quando as personagens que representam as suas emoções vão averiguar as “Ilhas da Personalidade”, é visto que a “Ilha da Família” é  pequena e simples, sendo ofuscada pela “Ilha da Amizade”. Isso porque esta etapa é amplamente marcada por uma abertura do sistema familiar ao exterior, sendo dado um valor especial a pares na adolescência, que servirão de suporte, estarão presentes em momentos de experimentação de papéis sociais, nas vivências dos afetos e desafetos e no desenvolvimento de atitudes, valores e ideias (Alarcão, 2000).

Pontos negativos do filme:

Ideia de que as emoções “tomam controlo de nós”

No filme: a Ansiedade, ao assumir o comando do funcionamento emocional da Riley, acabou por criar algo maior do que ela própria – esta foi juntando várias crenças, na esperança de construir um sentido de identidade em que a Riley é a melhor em tudo o que faz, mas acabou por criar uma identidade repleta de dúvidas e inseguranças. 

Na vida real: As emoções têm, efetivamente, um grande peso no funcionamento diário de uma pessoa. Contudo, não operam sozinhas – os seres humanos são dotados de racionalidade, e por isso são capazes de aceder à razão nos seus processos de tomada de decisão. O trabalho de Helion & Pizarro (2015) enfatiza o papel da razão enquanto regulador emocional, sendo possível que duas pessoas que experienciam uma mesma emoção sejam capazes de reagir ao mundo de forma diferente, consoante a sua capacidade de pensar racionalmente. A razão é a ferramenta que permite que um indivíduo ajuste a sua resposta emocional ao contexto e situação específica em que se encontra, permitindo-lhe agir de forma ponderada e não apenas controlada pelas emoções.

Para além disto, a Ansiedade dedicou-se à destruição do sentido de identidade da Riley “eu sou uma boa pessoa” (sic.), substituindo-o por um novo “eu não sou boa o suficiente” (sic.). A literatura em torno do desenvolvimento da identidade na adolescência reconhece esta fase enquanto crítica, na medida em que o sentido de identidade se encontra mais vulnerável a mudanças, mas ainda assim tem um certo grau de estabilidade, não podendo ser radicalmente substituído como foi no filme. Por exemplo. o estudo de Klimstra e colaboradores (2009) mostra que a dimensão da identidade relativa ao compromisso (i.e., o grau de envolvimento e dedicação que um indivíduo tem em relação a crenças, objetivos, valores e papéis sociais) se mantém estável ao longo da adolescência. Ainda, o estudo de Goth et al. (2012), que procurou validar uma medida de autorrelato do desenvolvimento da identidade, não mostrou quaisquer diferenças entre a estabilidade na identidade de adolescentes mais jovens ou com mais idade, sugerindo que o sentido de identidade de uma pessoa adolescente não é tão flexível como por vezes se faz parecer.

Pouco foco nas estratégias de regulação emocional

No filme: a Riley aparenta ter um ataque de ansiedade durante o jogo de hóquei. Quando é expulsa do ringue, é vista a respirar profundamente até que o ataque em questão termine. Este parece ser o único momento do filme que retrata o processo de regulação emocional.

Na vida real: Perante um ataque de ansiedade, existe uma variedade de coisas que podem ser feitas. Respirar de modo profundo e lento é certamente uma delas, no entanto, as pessoas que redigiram “DivertidaMente 2” poderiam ter aproveitado a sua plataforma para exibir outros mecanismos de regulação emocional, com um objetivo de psicoeducação.

A revisão literária de Cisler & Olatunji (2012) aborda um conjunto vasto de estratégias de regulação emocional que podem ser usadas por pessoas com perturbações de ansiedade, sendo uma das mais benéficas a estratégia de reavaliação cognitiva (em inglês: cognitive reappraisal), em que o indivíduo faz um trabalho de reinterpretação da situação ansiogénica de modo a que esta possa ser vista de uma maneira mais positiva ou menos assustadora, permitindo-lhe responder melhor à situação.

Quando a ansiedade está presente, as outras emoções desaparecem?

No filme: a personagem Ansiedade aborrece-se com o papel desempenhado pelas personagens que representam as emoções básicas (Alegria, Tristeza, Medo, Raiva e Nojo), então envia-as (e às crenças que estas construíram) para um lugar escuro e longínquo, de modo a que estas não consigam definir a identidade da Riley. 

Na vida real: Por muito que o interesse pelo estudo do funcionamento emocional seja crescente nos tempos recentes, ainda existe muito por descobrir no que concerne às emoções, às suas funções e às estruturas que lhes são subjacentes. Assim, coexistem algumas correntes teóricas, sendo uma das mais conhecidas a teoria das emoções básicas (Schirmer, 2015). Esta teoria defende que existem estados emocionais elementares e indivisíveis, que são inatos e comuns a todos os seres humanos. Não existe ainda consenso sobre quantas e quais são as emoções básicas, sendo que frequentemente se assume que são seis: a alegria, a tristeza, o medo, a raiva, o nojo e a surpresa (Bear et al., 2015). Deste modo, as restantes emoções seriam resultantes de uma interação entre emoções primárias e funções cognitivas ou até mesmo fatores externos relativos à socialização e experiências de vida de cada indivíduo (Celeghin et al., 2017). Assim, não parece possível que a ansiedade exista enquanto emoção se nenhuma das emoções básicas ou crenças se encontrarem presentes para constituí-la.

Para além disso, se olharmos de forma objetiva para a manifestação cerebral do estado emocional de ansiedade, parece ser comum na literatura associar esta emoção a um estado de forte ativação amigdalar. A Amígdala é uma região cerebral que tem um papel fulcral no Sistema Límbico (sistema cerebral responsável pelo processamento e expressão emocional), e a sua atividade está envolvida nas manifestações neuronais de várias outras emoções. As mais frequentemente reportadas são o medo e a raiva, mas estudos já mostraram resultados promissores para a ativação amigdalar em estados de alegria e tristeza (Bear et al., 2015). Ainda, a ansiedade parece estar associada a uma rede neuronal extensa, mobilizando regiões cerebrais essencialmente relacionadas com o funcionamento executivo, a memória e a regulação emocional (Ghasemi et al., 2021). Posto isto, não havendo um locus exclusivo da ansiedade no cérebro, não parece ser possível que esta surja num ambiente completamente isolado da presença de outras emoções, crenças, pensamentos e memórias. 

Conclusão

O filme “DivertidaMente 2” trouxe algo de extremamente importante: abriu espaço para a discussão e exploração da temática das emoções em pessoas de todas as idades. Enquanto estudantes de Psicologia, podemos ter a tendência para querer incutir neste tipo de filme um rigor científico que não lhe é necessário – ambas as edições do DivertidaMente fizeram um ótimo trabalho em mostrar às pessoas crianças e adultas que as emoções, independentemente de serem de natureza positiva ou negativa, moram juntas no nosso cérebro e são todas necessárias ao nosso bom funcionamento. 

Nesta edição em específico, o foco na adolescência enquanto fase crítica do desenvolvimento faz com que possamos cuidar das pessoas adolescentes da nossa vida com a consciência de que estes se encontram a atravessar um período complexo, repleto de mudanças numa variedade de áreas, mas principalmente na esfera social.

 Apesar do sucesso do filme e da abertura que este dá para se discutir emoções de uma forma leve, é necessário prestarmos atenção à literalidade com que por vezes as emoções e estados psíquicos são representados nos filmes, e por isso, profissionais de psicologia devem manter-se em atualização quanto a métodos de psicoeducação e de intervenção para lidar não só com crianças e adolescentes, mas também com pessoas adultas, que algumas vezes apresentam ideias pejorativas acerca das emoções, com o objetivo de alterar formas de regulação emocionais disfuncionais e imaturas por outras mais funcionais. Deste modo, pretendemos usar a nossa plataforma para que pessoas adultas, como pessoas educadoras ou tutoras, consigam encontrar as ferramentas necessárias para serem agentes na regulação emocional das crianças.



 

Bibliografia

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Ghasemi, M., Navidhamidi, M., Rezaei, F., Azizikia, A., & Mehranfard, N. (2021). Anxiety and hippocampal neuronal activity: Relationship and potential mechanisms. Cognitive Affective & Behavioral Neuroscience, 22(3), 431–449. https://doi.org/10.3758/s13415-021-00973-y

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Kanjilal, Rajlakshmi & Vijayalakshmi, P. (2019). Disney’s Inside Out: Insights on Emotions and Emotional Intelligence. 7. 1513-1523.

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Siegel, D. J., Bryson, T. P. (2018). O cérebro da criança (2ªedição). Casa das Letras.

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Weinberg, R., & Gould, D. (2019). Foundations of Sport and Exercise Psychology (7th ed.). Human Kinetics.

“Ter poder não é poder tudo: O abuso do poder em instituições de ensino superior portuguesas”

Autoria: Carolina Paiva & Sofia Ribeiro
Edição: Patricia Silva & Tiago Taliscas

A atenção dada à ocorrência de casos de abuso de poder e assédio em instituições de Ensino Superior parece estar a aumentar. Esta temática tem surgido associada a notícias que, quando vêm à tona, recebem uma dose considerável de atenção das instituições e dos media, mas que algum tempo depois parecem cair no esquecimento. A forma como estas ocorrências são tratadas dificultam a estimativa de quantas pessoas sofrem ou já sofreram previamente com tratamento abusivo nas suas universidades, fazendo-nos refletir sobre a quantidade de testemunhos que nunca são nem irão ser ouvidos, e consequentemente sobre a pertinência de compreender mais a fundo esta temática.

A presente reflexão parte da observação dos resultados preliminares da investigação desenvolvida pelo jornal Gerador (2024), que se debruça sobre esta temática. As respostas dadas pelas pessoas inquiridas ao formulário digital desta instituição até o momento são alarmantes: perto de 60% das pessoas reporta não sentir conforto ou segurança nas suas instituições de ensino, e perto de 90% reportam já ter sofrido pessoalmente com alguma forma de abuso nas instituições que frequentam. Estas percentagens chamam-nos a atenção para a grande dimensão deste problema, e para o quão despercebido este poderá ter passado pela comunidade estudantil ao longo dos últimos anos. Deste modo, procuramos fazer um levantamento das mais recentes ocorrências de assédio e abuso de poder em contexto universitário, incluindo alguns testemunhos com os quais nos cruzámos na nossa pesquisa, explorando o impacto destas más práticas na saúde mental das pessoas vitimizadas, e refletindo sobre o modo atual de funcionamento das instituições de Ensino Superior e sobre o quão equipadas estas estão (ou não) para acolher e lidar com estes casos da forma mais correta possível.

Dados e estatísticas sobre abuso de poder no Ensino Superior

Em 2022, a Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (FDUL) deu palco à temática do assédio e abuso de poder no Ensino Superior através da abertura de um canal para denúncias por parte do seu Conselho Pedagógico (Público, 2022; Diário de Notícias, 2022). Nos primeiros 11 dias após a sua abertura, este canal recebeu 50 queixas (22 de assédio sexual e 29 de assédio moral), relativas a 10% dos professores da instituição, cujos nomes se repetiram consistentemente ao longo das queixas feitas. É importante ressaltar que a abertura deste canal não se deu de ânimo leve – o professor responsável por este ato foi alvo de um processo disciplinar e aceitou todas as suas consequências. Apesar de o processo ter entretanto sido arquivado, isto parece refletir perfeitamente a forma como se lida com este tema: as vítimas são silenciadas e as pessoas que lhes tentam dar voz são igualmente ignoradas.

Os dados apresentados fizeram com que os serviços administrativos da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa colaborassem com os seus alunos para a redação de um relatório que explicasse as ocorrências mais profundamente, bem como para a definição de um código de conduta. Ainda, foi criado um Gabinete de Apoio à Vítima, que acolheu mais 10 denúncias ao longo do ano de 2023. No entanto, o que foi feito na prática em relação a essas denúncias? Não existe qualquer indício de que as pessoas a quem as denúncias se reportavam tenham deixado de lado as suas funções na instituição ou de que tenham recebido alguma sanção sobre isso. As pessoas estudantes que deram depoimentos ao Diário de Notícias mencionaram uma relutância geral em fazer denúncias, explicada por um receio de serem associadas a casos contra “professores com um bom nome” (Diário de Notícias, 2022). Nos dias de hoje, já não se ouve falar do caso FDUL, apesar da consistência com que este aparecia em reportagens em 2022. O facto de esta ser uma instituição centrada no ensino do Direito e de ser esta a sua posição é alarmante: se são as pessoas que mais conhecem a lei as que mais a contornam, quem praticará a justiça? 

A cidade de Coimbra, conhecida pela sua tradição académica e ênfase histórica no ensino universitário, também parece registar um número elevadíssimo de casos de assédio no Ensino Superior, especificamente de teor sexual: 94% das pessoas inquiridas pela União de Mulheres Alternativa e Resposta (UMAR) já foram alvo de assédio sexual e 21.7% de coerção sexual (UMAR, 2018 cit. in Coimbra Coolectiva, 2022).

Numa nota mais recente, no início do presente ano, o Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra publicou um relatório que divulga uma variedade de ocorrências registadas nesta instituição ao longo dos últimos anos (CES-UC, 2024). Os resultados do relatório em questão reportam denúncias contra 14 membros da comunidade escolar do CES-UC, feitas de forma individual e grupal por 32 pessoas distintas, maioritariamente do género feminino. As denúncias diziam principalmente respeito a ocorrências de assédio moral e abuso de poder, sendo o assédio sexual menos reportado. Em verdade, a maior parte das pessoas denunciadas não o foi por ter cometido atos repudiáveis, mas sim pela adoção de uma postura de encobrimento e negligência perante a má prática de outras pessoas, geralmente sujeitos com uma certa autoridade (CES-UC, 2024). É importante reforçar ainda, que o CES-UC era o local de trabalho de Boaventura Sousa Santos, sociólogo altamente conhecido que foi recentemente acusado de atos de assédio moral, sexual e de apropriação de trabalhos de outrem, tendo também recebido bastante atenção por parte dos meios de comunicação (Observador) (https://observador.pt/seccao/pais/boaventura-sousa-santos/)

Possivelmente motivados pelas publicações nos media que mencionavam a sua instituição, o CES-UC procurou informar e educar a população sobre a temática do assédio e abuso de poder, diferenciando-o dos conflitos que normalmente surgem em contextos pedagógicos ou laborais pela presença de intencionalidade e pela natureza repetitiva dos atos (CES-UC, 2024). Ainda, este documento enumera ações frequentemente normalizadas que devem ser consideradas como assédio moral, tais como humilhação/crítica pública, agressões verbais ou físicas, ameaças de retenção (em caso de não realização de pedidos inadequados por parte de docentes), sobrecarga de trabalho, discriminação (por etnia, religião, etc.) ou apropriação de ideias de outra pessoa como se fossem suas. A definição de assédio sexual é mais linear, sendo reportado enquanto qualquer tipo de contacto não consensual com qualquer tipo de atividade de cariz sexual. Este trabalho de definição de conceitos, bem como aquele conseguido pelo jornal Gerador (2024), que delimita os conceitos de “assédio”, “assédio sexual” e “abuso de poder”, é um passo bastante importante para que as vítimas saibam enquadrar o seu desconforto e para que estas se possam sentir empoderadas e validadas nos seus processos de denúncia. 

Contudo, é importante compreender que existem certos fatores contextuais capazes de expandir estas definições. O trabalho de Neto (2020) procura explorar as perceções tidas por estudantes da Universidade de Coimbra face ao que é o assédio sexual. Os aspetos principais a emergir deste estudo passam pela dificuldade de aceitar uma definição universal, pois cada pessoa terá os seus limites. O consenso encontra-se em tomar como assédio algo que gere desconforto, apesar de este limiar de desconforto não ser igual para todas as pessoas. Por exemplo, o curso superior em que as pessoas estudantes se encontram matriculadas pode ter um efeito nas suas conceções de assédio. Nesse sentido, estudantes de desporto podem relativizar muito mais o toque físico indesejado e serem menos propensos a considerá-lo enquanto assédio, possivelmente pela sua experiência com desportos de contacto (Neto, 2020). 

Ainda, são mencionados estereótipos culturais relacionados a machismo em definições, independentemente do género das pessoas que as deu. As pessoas que participaram neste estudo parecem acreditar que a maioria das vítimas se identifica com o género feminino, mas reconhecem a possibilidade de pessoas vitimizadas que se identificam com o género masculino não se revelarem, pela sua relutância em mostrar vulnerabilidade ou serem vistos enquanto fracos (Neto, 2020). Isto reforça a probabilidade de que existam vários casos onde as vítimas se identificam com o género masculino que nunca chegarão a ser descobertos nem tratados, não só porque estas não terão o conforto para falar sobre as ocorrências, mas também porque estes poderão ter uma tendência para normalizá-las. 

 De facto, nos últimos quatro anos foram registadas 24 denúncias “válidas” de assédio moral em instituições de ensino superior à Inspeção Geral da Educação (Expresso, 2024). Estas 24 foram selecionadas de entre um número maior, mas algumas destas foram retiradas ou redirecionadas antes de poderem ser consideradas. Estes números incentivam-nos a refletir, não só sobre o que poderá fazer com que uma denúncia seja “inválida” (dadas as divergências mencionadas anteriormente nas conceções pessoais sobre o que é ou não considerado assédio), mas também sobre a quantidade de casos que são silenciados e sobre os motivos por trás desse silêncio. Por exemplo, a reportagem conduzida pelo jornal Coimbra Coolectiva em 2022 aponta para a complexidade e lentidão dos processos de denúncia, bem como a presença de lacunas nos mesmos enquanto meio de afastamento das vítimas, havendo testemunhos de denúncias feitas sem qualquer seguimento posterior por parte das instituições. Deste modo, é importante que mantenhamos presente que o número de denúncias levadas a cabo não deve ser considerado enquanto um valor representativo das ocorrências reais.

Após a publicação da primeira reportagem realizada pelo Gerador e dos casos do CES-UC serem anunciados, os movimentos estudantis e coletivos têm ganhado mais força na exposição de casos de assédio nas instituições, recebendo uma maior notabilidade pelos media (Gerador, 2024). As denúncias anunciadas desencadearam o movimento Academia Não Assedia, que estabeleceu o lançamento público do Movimento Nacional Contra o Assédio na Academia, criando um gabinete independente que fornece apoio psicológico e jurídico às vítimas (Gerador, 2024). Estes afirmam que têm como objetivo a exposição desta realidade sombria, que se torna normalizada nas instituições académicas, exigem que as pessoas agressoras sejam devidamente punidas e denunciadas e que a falta de atuação por parte das universidades pare imediatamente (Gerador, 2024).  

Alguns relatos quase invisíveis

O abuso de poder no Ensino Superior e a sua prática constante leva ao abrigo de inúmeras histórias pessoais de quem já passou por tal sofrimento. Um dos testemunhos, dado por uma aluna na universidade de Coimbra de nome Vitória, de 19 anos, vítima de assédio moral, revela a face sombria de uma realidade que precisa ser confrontada e transformada. Tudo começou no seu 2º ano de faculdade, quando o seu professor começou a abordá-la com mais frequência e mais inapropriadamente do que aos seus colegas do sexo oposto. Nestas ocasiões, o docente sugeria-lhe encontros fora da aula, como irem tomar um café, ao que Vitória sempre recusou. No entanto, numa das suas tentativas persistentes, o professor modificou o convite para um jantar. Vitória menciona também que esse professor trabalhava numa empresa dentro da área do seu curso, oferecendo-lhe emprego, mas que para isso teriam que conversar fora do contexto de sala de aula, oferta que esta recusou novamente. Após isso, Vitória percebeu a discrepância de notas entre si e os seus colegas de trabalho (os seus colegas obtiveram classificações finais de 18 enquanto Vitória obteve 13) e quando questionou o professor sobre o sucedido o mesmo respondeu-lhe: “Se tivesse tomado café ou jantado comigo, teria tido 18 ou até mais”. Esta situação retrata a urgência para a denúncia desta problemática e para o envolvimento mais ativo das instituições superiores que são caracterizadas pelo seu conservadorismo e repressão destes casos (Coimbra Coolectiva, 2022).

Já Vera, uma antiga aluna da faculdade de Lisboa que frequentou um curso superior artístico, também partilhou a vivência de comportamentos abusivos por parte de um docente, durante dois dos seus três anos de licenciatura (Gerador, 2024). A ocorrência desta conduta problemática fê-la ponderar sobre desistir do curso, relatando que em certas ocasiões teve que sair a meio da aula devido à extrema ansiedade que sentia, chegando até a vomitar de “nervosismo”, contando os segundos para ir embora da sala, esperando que o docente não falasse de todo consigo, com o receio de que este fizesse algum pedido inapropriado. Além disso, Vera também conta que nos momentos de apreciação dos trabalhos desenvolvidos pelos alunos por parte dos docentes, o docente em questão humilhava-os, através de múltiplas injúrias, à frente de toda a turma, dando constantemente informações contraditórias sobre o que tinham que fazer nesses trabalhos. A ex-aluna confessa que foram as vivências destas situações nas aulas deste professor que lhe motivou a procurar ajuda profissional, tendo começado a ir a uma psicóloga (Gerador, 2024).

É possível denotar que este problema é transversal, presente em qualquer tipo de instituição, quer seja ela pública, privada, universidade ou politécnico. Apesar de esta prática ser uma realidade conhecida e, infelizmente, partilhada por diversos estudantes que passam pelo Ensino Superior (Gerador, 2024), a maioria das vítimas afirma ter lidado com a situação através de evitamento, seja ao não falar do assunto, faltar a aulas, não frequentar festas e espaços universitárias, ou até mesmo pedir transferência de faculdade (Melo, 2019; Coimbra Coolectiva, 2022). 

Além da dificuldade em processar a ocorrência, a culpabilização e o receio de uma possível retaliação e de serem descredibilizadas pelos superiores ou até mesmo pelos pares, desmotivam a denúncia e a colaboração das pessoas vitimizadas (Melo, 2019). A falta de uma rede de suporte a nível jurídico que procure provar a existência de comportamentos abusivos torna-se um processo complexo e longo com diversos obstáculos (Coimbra Coolectiva, 2022; Gerador, 2024). Para além disso, a falta de divulgação de informação sobre estes mecanismos de denúncia leva ao reforço da conduta destes comportamentos, pois os códigos de conduta nas IES tendem a focar-se nas diligências sobre as relações de trabalho e não nas relações académicas, ocorrendo equívocos nas etapas do processo de relato de incidentes, diminuindo a sua eficácia (Coimbra Coolectiva, 2022).

Por fim, é também necessário a alerta para a problemática do assédio entre pessoas estudantes numa mesma instituição de Ensino Superior, isto é, para além das ocorrências entre a comunidade docente e estudantil. Nesse tipo de assédio, geralmente pessoas estudantes que estejam mais avançadas nos seus estudos se aproveitam de pessoas estudantes menos enraizadas na instituição, que procuram ativamente integrar-se na mesma, praticando atos de assédio contra as mesmas. Estas práticas parecem ser ainda mais normalizadas e invisibilizadas devido à falsa ideia de horizontalidade nestas relações entre pessoas que são estudantes, mas mesmo assim se encontram em posições diferentes (Gerador, 2024). Também estas relações devem ser tomadas enquanto verticais, e também estas devem ser alvo de atenção e intervenção, pois têm impactos negativos nas vítimas.

Impactos na saúde biopsicossocial e desempenho académico

A prática de abuso de poder e de assédio no contexto do Ensino Superior, quer seja este sexual ou moral, pode ter um grande impacto negativo no bem-estar físico e psicológico da comunidade estudantil, e que comprometem o desempenho académico de estudantes, podendo até desencadear o desenvolvimento de uma série de perturbações. O Stress Pós-Traumático (PTSD), por exemplo, leva a sintomas de flashbacks, pesadelos e hiperatividade após a situação de abuso. Dado que a perturbação de Stress Pós-Traumático se caracteriza por uma postura de evitamento de aspetos que lembram a pessoa do seu trauma, bem como por alterações na sua reatividade (APA, 2022), as pessoas estudantes que sofrem com a mesma poderão ter dificuldades sérias no que concerne à vida diária em contexto universitário.

A repercussão destes acontecimentos poderá agravar a severidade dos sintomas de PTSD, mediante a sua regularidade, interferindo significativamente na capacidade funcional da vítima, levando-a experienciar uma elevada tensão física e emocional, bem como stress e ansiedade. (HO et al., 2012; as cited in Melo, 2019; Powell, 2020; as cited in Balamurugan, 2023). É também importante destacar que 41% das pessoas denunciantes que colaboraram na investigação do CES-UC (2024) reportaram que a sua experiência com assédio/abuso danificou particularmente a sua saúde mental, sendo que os restantes participantes mostraram preocupações com danos físicos, económicos e académicos.

Um estudo realizado na Universidade de Évora (UÉ) revela que cerca de metade dos estudantes no Ensino Superior foram vítimas de assédio moral (50.2%). Estes casos correlacionam-se com um elevado número de sintomas depressivos e ansiosos, sugerindo que as pessoas estudantes que sofrem de assédio moral e sexual têm uma saúde mental mais debilitada em comparação com aquelas que não experienciam esta problemática (DN, 2023). De facto, a população universitária parece ter uma elevada prevalência de problemas de saúde mental, sendo que 41% da comunidade estudantil universitária relata sintomas de ansiedade moderada a grave e 39% de depressão moderada a grave (Hall, 2023). Estes valores mostram-se preocupantes, sendo seis vezes maiores na população estudantil do que na população geral, segundo um estudo realizado em 26 países com 2300 alunos (Hall, 2023). 

Em certos casos, as pessoas estudantes demonstraram-se mais propensos a envolverem-se em práticas de abuso de substâncias e a terem ideação suicida, partilhando sentimentos de vergonha, solidão e humilhação, e revelando que a sua qualidade de vida foi moderadamente afetada pela agressão iniciada pelo docente (Cortina et al., 1998). Deste modo, esta conduta problemática tem sido relacionada a perceções negativas das pessoas estudantes em relação à sua experiência académica: estas tendem a perceber menos justiça e igualdade dentro da universidade, resultando numa diminuição de confiança nas suas próprias habilidades académicas e num menor respeito dentro da academia (Cortina et al., 1998).  Além disso, a ocorrência destas condutas abusivas proporcionam uma diminuição do desempenho académico, problemas de aprendizagem, à diminuição de motivação para aprender, o isolamento da vida universitária e maiores sentimentos de solidão (Melo, 2019). 

Para além disto, o estudo de Romito et al. (2016) refere que quando as pessoas estudantes são expostas a uma alta frequência de comportamentos de assédio sexual, a taxa de sintomatologia associada a comportamento alimentar desordenado aumentou duas vezes entre as jovens que se identificam com o género feminino e três vezes entre aquelas se identificam com o género masculino. A maioria das vítimas do sexo feminino associam a experiência de assédio ao sentimento de culpa, isto é, de que deviam ter sido capazes de prever que tal iria acontecer (Melo, 2019), bem como a sintomatologia de pânico (Batiani et al., 2019). Em contraste, os poucos relatos existentes de estudantes que se identificam com o género masculino mencionam sentimentos de vergonha associados ao papel, estereótipo e estigma social “de se fazer homem”, devendo-se sentir lisonjeado por ser alvo desse tipo de “atenção especial”, independentemente de esta ser ou não desejada pelo próprio (Melo, 2019). Pessoas do género masculino relatam ainda uma menor perceção de sintomatologia depressiva após a experiência de assédio em comparação às pessoas do género feminino (Batiani et al., 2019). 

Os institutos superiores, locais onde a promoção da saúde mental da sua comunidade deveria ser uma das prioridades, acabam muitas vezes por na realidade contribuir para o agravamento e produção de sofrimento da sua comunidade estudantil. A Organização Mundial da Saúde (OMS, 2022; as cited in Basso et al., 2022) observou algumas das especificidades sobre os efeitos desta problemática no contexto universitário. Deste modo, percebeu-se que a dimensão em que esta tinha mais impacto sobre a comunidade estudantil era a psicológica (38%), em que questões como interferências nas relações interpessoais, deixar de fazer determinadas ações ou de vestir determinadas roupas surgem também como alguns dos efeitos produzidos pelo assédio no ambiente universitário (Basso et al., 2022). 

Todos estes efeitos de se passar por uma situação de abuso devem ser compreendidos como parte integrante da saúde mental, vista como um todo complexo, inserido em múltiplos contextos que influenciam diretamente o desenvolvimento ou detrimento da saúde mental de estudantes. Assim, ao considerar o ambiente universitário como um contexto específico, complexo e singular no seu funcionamento, é possível perceber que o processo de saúde dos estudantes também se encontra intimamente relacionado às experiências vividas dentro da instituição (Basso et al., 2022). 

Reflexões e Implicações

A reflexão sobre as temáticas do assédio e abuso de poder no Ensino Superior é bastante rica na medida em que não só nos preocupa, como também nos incentiva. Por exemplo, o relatório do CES-UC (2024) reporta que o Código do Trabalho se encontra atualmente a passar por um processo de revisão, de modo a que as leis em torno dos temas do assédio e abuso de poder estejam claras e delimitadas de forma a proteger as vítimas. Este esforço ativo poderá ter um grande impacto no funcionamento futuro de certas instituições, levando a um número de denúncias mais próximo do número de reais ocorrências, pela instalação de um sentimento de segurança por se saber da existência de uma proteção legislativa.

Deste modo, consideramos que a proteção das vítimas deverá também ser acompanhada de atos de punição e responsabilização por parte das pessoas agressoras. Por exemplo, os dados e testemunhos de pessoas estudantes no âmbito do caso da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (DN, 2022) mencionam a reincidência de atos abusivos por parte das mesmas pessoas, e referem também o “bom nome” dos professores enquanto critério para se absterem de denúncias. Não se pode esperar que existam mudanças no comportamento abusivo se as pessoas denunciadas, para além de não sofrerem nenhuma punição, ainda recebem o reforço positivo de terem uma identidade imponente, à qual ninguém faz frente, independentemente dos atos praticados.

Para além disto, a análise deste tema permite o levantamento de fatores de risco para a sua ocorrência, permitindo que se previnam situações desagradáveis. Segundo a investigação conduzida pelo Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, tanto o assédio moral como sexual têm enquanto fator de risco a existência de relações assimétricas, o que é inevitável em contexto universitário: qualquer relação entre um professor e um aluno será de natureza vertical, com o professor enquanto figura hierarquicamente superior e o aluno inferior. Contudo, existem alguns fatores que, se promovidos nestas relações, poderão protegê-las do surgimento de dinâmicas abusivas (CES-UC, 2024), tais como o espaço para comunicação bidirecional entre professores e alunos; a definição clara dos limites da relação e dos papéis que cada pessoa deve desempenhar na mesma; e uma restrição das interações professor-aluno ao ambiente escolar. 

Contudo, ainda existe um longo caminho a percorrer no que toca a certas dinâmicas de assédio e abuso de poder em contexto universitário. Por exemplo, o estigma parece ser uma das barreiras mais frequentemente identificadas enquanto motivo para as pessoas não procurarem ajuda psicológica (Conceição et al., 2024). Procurar ajuda poderá fazer com que as pessoas sejam erradamente percepcionadas por si mesmas e pelos outros enquanto “fracas” ou “ problemáticas”, o que poderá também levar ao seu isolamento social. Isto poderá desmotivar outras pessoas em situações semelhantes a darem o seu testemunho, ou tornar pouco apelativo o seu envolvimento em iniciativas de consciencialização, perpetuando um ciclo repetitivo de silêncio e sofrimento. A redução do estigma em ambiente académico deve ser uma prioridade para as instituições de Ensino Superior, que devem ser um veículo de promoção do acesso à saúde mental, especificamente na fase de vida em que essas pessoas se encontram. 

Além disso, é importante destacar que algumas das vítimas podem não procurar apoio, mesmo que reconheçam que tal seria benéfico (Melo, 2019). A revisão de Velasco e colaboradores (2020) refere que a população jovem poderá ter alguma dificuldade na procura de ajuda psicológica devido à sua falta de autonomia financeira para tal. Afirmações como esta poderão suportar uma necessidade de alterar o modo de funcionamento das estruturas de serviços de saúde e bem estar (SSMBE) das IES e não só, para que estas sejam mais acessíveis e adequadas a esta população, ou até mesmo uma necessidade de criar estruturas especificamente direcionadas ao apoio de vítimas de assédio e abuso de poder no contexto do Ensino Superior. 

Deste modo, apontamos para a urgência da implementação de opções de resolução que sejam mais rápidas e simplificadas no procedimento de denúncia de assédio no ES, bem como da criação de mecanismos de sensibilização que protejam a vítima, evitando o uso de processos disciplinares longos que não garantem o anonimato e que podem ser intimidantes para esta. O processo disciplinar não deve ser a única forma de denunciar estes comportamentos abusivos, pois revela-se longo e angustiante para a pessoa que denuncia, em especial para estudantes com ciclos de estudo mais curtos, que não podem suportar esse processo e não têm garantias de proteção. A instauração de mecanismos de denúncia anónima deve ser uma alternativa a ser adotada pelos institutos superiores, nos quais um conjunto de denúncias de um departamento específico poderia desencadear medidas preventivas, focalizando áreas com maior incidência de casos. Destacamos também a importância de fornecer linhas de apoio com informações sobre o assunto, oferecer mais formação para as pessoas envolvidas nos canais de denúncia e criar uma plataforma online onde relatos anónimos possam ser feitos, permitindo à universidade desenvolver medidas mais direcionadas (Coimbra Coolectiva, 2022). 

No entanto, reconhecemos que as universidades enfrentam custos financeiros significativos ao implementar programas de apoio e mecanismos para impedir que a conduta de assédio continue nas suas instituições. Estes recursos exigem a contratação de profissionais qualificados na área e a criação de infraestruturas específicas de apoio e suporte para as vítimas. Esses custos podem pressionar os seus orçamentos, levando a cortes em outras áreas igualmente necessárias. Por fim, a divulgação destes casos pode efetivamente arruinar a reputação das instituições, podendo estas sofrer com perda de prestígio, resultando na diminuição de inscrições e em quedas nos seus financiamentos e parcerias. A gestão inadequada destas questões pode agravar ainda mais os danos à reputação, sugerindo uma falta de competência por parte das administrações universitárias.

Enquanto associação, pretendemos usar a nossa plataforma enquanto meio de informação e consciencialização – reconhecemos a insuficiência das estruturas e procedimentos atualmente existentes, mas apelamos a que isto não desencoraje as pessoas vitimizadas a falarem sobre a sua experiência. Após esta reflexão, sabemos que uma denúncia poderá, na verdade, estar a dar voz a outras centenas e apoiamos o desenvolvimento de uma linha de denúncia nacional, com um plano de execução prática para os casos denunciados. Sabemos também que a importância de recorrer e ter disponíveis serviços psicológicos para estes casos é fundamental. O artigo de Conceição et al. (2024) menciona a literacia em saúde mental enquanto um dos principais preditores da procura por serviços de apoio psicológico – pretendemos fazer os possíveis para aumentar esta literacia na comunidade estudantil, e, por consequência, aumentar os seus níveis de conforto em procurar ajuda. Apoiamos também o desenvolvimento e promoção de serviços de saúde mental e bem estar nas IES portuguesas.

Foi vítima de algum tipo de abuso? Conhece alguém que tenha sido? Disponibilizamos algumas linhas de apoio emocional com acesso confidencial e anónimo:

  • Aconselhamento Psicológico SNS24: 808 24 24 24
  • SOS Estudante (para todas as pessoas): 239 484 020 / 969 554 545 / 915 246 060
  • Linha de Apoio à Vítima (APAV): 116 006

Bibliografia

A Cabra (2024, March 15). CES divulga Relatório sobre casos de abuso sexual, poder e assédio na instituição. A Cabra. https://acabra.pt/2024/03/ces-divulga-relatorio-sobre-casos-de-abuso-sexual-poder-e-assedio-na-instituicao/

American Psychiatric Association. (2022). Diagnostic and statistical manual of mental disorders (5th ed., text rev.)

Basso, M. S., Fontana, J., & Laurenti, C. (2022). Violência sexual e saúde mental de universitários: uma sistematização da literatura brasileira. Psicologia Revista, 31(2), 385–411. https://doi.org/10.23925/2594-3871.2022v31i2p385-411

Centro de Estudos Sociais (2024, February 29). Comissão Independente de Esclarecimento de situações de assédio no centro de estudos sociais – Relatório final. Centro de Estudos Sociais. https://www.ces.uc.pt/ficheiros2/files/Relatorio%20Final%20-%20CI.pdf

Coimbra Coolectiva (2022, June 15). Assédio: instituições de ensino superior de Coimbra quase sem denúncias mas vítimas contam outra história. Coimbra Coolectiva. https://coimbracoolectiva.pt/historias/temas/educacao/assedio-instituicoes-de-ensino-superior-de-coimbra-quase-sem-denuncias-mas-vitimas-contam-outra-historia/ 

Conceição, V., Mesquita, E., & Gusmão, R. (2024). Effects of a stigma reduction intervention on Help-Seeking Behaviors in university Students: a 2019-2021 randomized controlled trial. Psychiatry Research, 331, 115673. https://doi.org/10.1016/j.psychres.2023.115673 

DN/Lusa. (2023, June 1). Estudo diz que um terço dos estudantes universitários já sofreu assédio sexual. Diário de Notícias.

https://www.dn.pt/sociedade/estudo-diz-que-um-terco-dos-estudantes-universitarios-ja-sofreu-assedio-sexual–16457832.html/

Expresso. (2024, March 13). Inspeção-Geral da Educação recebeu 24 denúncias de assédio moral em faculdades nos últimos quatro anos. Expresso.

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Gerador. (2024). Abuso de poder no ensino superior em Portugal: as múltiplas dimensões de um problema estrutural. Gerador.

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Gerador. (2024). A luta contra o assédio: movimentos estudantis fazem frente à “inércia” das instituições. Gerador.

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Gerador. (2024). Assédio moral no ensino superior: práticas “normalizadas” tornam o abuso sistémico. Gerador.

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Gerador. (2024). Quando o agressor está na mesma posição, o risco de invisibilidade é maior. https://gerador.eu/abuso-de-poder-no-ensino-superior-em-portugal/assedio-sexual-no-ensino-superior-quando-o-agressor-esta-na-mesma-posicao-o-risco-de-invisibilidade-e-maior/

Hall  (2023). Dor psíquica e assédio na Ciência e na Academia. Outras Palavras.

https://outraspalavras.net/crise-civilizatoria/dorpsiquica-e-assedio-na-ciencia-e-na-academia/ 

Henning, M. A., Stonyer, J., Chen, Y., Hove, B. A., Moir, F., & Webster, C. S. (2021). Medical Students’ Experience of Harassment and Its Impact on Quality of Life: a Scoping Review. Medical science educator, 31(4), 1487–1499. https://doi.org/10.1007/s40670-021-01301-2

Melo, C. (2019). O assédio sexual no contexto universitário português: a experiência de ser assediado dentro da faculdade [Master’s thesis, Instituto Universitário de Ciências Psicológicas, Sociais e da Vida]. Repositório Institucional do Instituto Universitário de Ciências Psicológicas, Sociais e da Vida.

http://hdl.handle.net/10400.12/7267

Neto, D. (2020). Afinal o que é o Assédio Sexual? – As representações dos/as estudantes da Universidade de Coimbra relativamente ao Assédio Sexual [Master’s thesis, Universidade de Coimbra]. Repositório Científico da Universidade de Coimbra. 

https://hdl.handle.net/10316/94650

Público (2022, April 4). Cinquenta queixas de assédio moral e sexual na Faculdade Direito da Universidade de Lisboa. Público.

https://www.publico.pt/2022/04/04/sociedade/noticia/cinquenta-queixas-assedio-moral-sexual-faculdade-direito-universidade-lisboa-2001269

Rainn (2024). Victims of Sexual Violence: Statistics. Rainn.

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St.John’s University (2024, May 28). How Sexual Violence Affects Mental Health in College Students. St.John’s University.

https://www.stjohns.edu/news-media/johnnies-blog/sexual-violence-mental-health-college-students

Velasco, A. A., Cruz, I. S. S., Billings, J., Jimenez, M., & Rowe, S. (2020). What are the barriers, facilitators and interventions targeting help-seeking behaviours for common mental health problems in adolescents? A systematic review. BMC Psychiatry, 20(1). https://doi.org/10.1186/s12888-020-02659-0

“A crise da habitação também afeta o Ensino Superior”

Autoria: João Lima & Sofia Costa
Edição: Patricia Silva, Carolina Paiva & Cátia Teixeira

Após um período marcado pela pandemia global do COVID-19, o mundo depara-se com conflitos e guerras que marcam a atualidade e que provavelmente deixarão um impacto duradouro a nível global. Em acréscimo a estas questões, Portugal enfrenta hoje graves crises sociais. Desde as adversidades que se sentem no setor da saúde, passando pelos obstáculos que a educação encontra, os cidadãos portugueses enfrentam também  uma crise na habitação. Por essa mesma razão, a reflexão, discussão e a necessidade de inovação social ganham especial preponderância nessa temática.

A crise da habitação em dados

A problemática da habitação não é recente. Desde 2017 que Portugal se encontra perante dificuldades em relação ao mercado da habitação. As causas subjacentes a este problema são múltiplas, destacando-se o aumento da procura por habitação (por exemplo, por investidores de outros países). Esse aumento na procura, associado à redução da oferta disponível (por exemplo, devido ao decréscimo na construção de novas habitações decorrente da crise económica de 2010-2012), traz dificuldades significativas para que as pessoas que residem em Portugal encontrem habitações adequadas (Rodrigues et al., 2023). 

Este é um problema que afeta toda a gente e no caso das pessoas mais jovens, esse problema pode ser ainda mais relevante. Em duas décadas a percentagem de jovens até aos 25 anos com casa própria caiu para metade (Costa, 2023; Leitão, 2023; Relvas, 2023; Revista de Imprensa, 2023). De acordo com dados da Eurostat (2023), em 2021, Portugal registou-se como o país da Europa em que jovens saem mais tarde da casa dos pais (m = 33.6 anos) e, embora os dados registados em 2022 notem um decréscimo desta idade para os 29.7 anos, pessoas jovens portuguesas, em comparação com outros países europeus (que registam uma idade média de saída de casa dos pais de 26.4 anos), continuam a depender do alojamento parental durante mais anos. Estes dados são expressivos das dificuldades económicas enfrentadas pelas pessoas mais jovens que vivem em Portugal. Além disso, estas adversidades se estendem para outros domínios da vida social, como por exemplo, para a educação. 

A crise da habitação no Ensino Superior Português

Pesquisas realizadas em Portugal indicam que estudantes do ensino superior português relatam ter muitas dificuldades na procura por alojamento (Agência Lusa, 2023; Terroso et al., 2023). Isso é particularmente preocupante quando uma porção significativa da população universitária é classificada enquanto “estudantes deslocados”. Como resultado, surgem maiores obstáculos ao acesso e à permanência no Ensino Superior, bem como à igualdade de oportunidades.

Mas afinal, qual é o estado atual do Ensino Superior português? Se é verdade que as contingências sociais e económicas atuais podem dificultar o acesso a instituições superiores de ensino, também é factual que este acesso tem vindo a aumentar nas últimas décadas. Entre o ano letivo de 2001/2002 (n = 396.601) e o ano letivo de 2022/2023 (n = 446.028), verificou-se um acréscimo de quase 50 mil estudantes no Ensino Superior. A maioria dessas pessoas encontra-se matriculada no ensino público (80.6%) e grande parte (62.1%) encontra-se a fazer a licenciatura, estando, por isso, no início do seu percurso académico (Direção-Geral de Estatísticas da Educação e Ciência (DGEEC), 2023a, 2023b). 

Geograficamente, dados de 2021/2022 revelam que a maioria dos estudantes se encontram concentrados no Norte (n = 144.781, 33.9%) ou na Área Metropolitana de Lisboa (n = 161.149, 37.8%), pelo que apenas 28.3% das pessoas estuda no Centro, Alentejo, Algarve ou numa das Regiões Autónomas (Direção-Geral de Estatísticas da Educação e Ciência (DGEEC) et al., 2023). Em 2023, estes resultados replicam-se. Se apenas forem contabilizadas as universidades públicas e o acesso ao Ensino Superior em 1ª fase neste ano, cerca de 74.7% das candidaturas foram aceites por universidades das grandes cidades, nomeadamente Coimbra, Lisboa, Minho e Porto (Universidade do Porto, 2023). Assim, esta procura pelas principais cidades do país pode resultar numa maior taxa de estudantes deslocados da sua zona de residência.

No caso específico da Universidade do Porto, das  4635 pessoas colocados na 1ª fase em 2023, cerca de 59.4% (n=2753) já residiam no distrito do Porto, enquanto que as restantes (n=1882, 40.6%) migraram das mais diversas cidades (Braga, Aveiro, Viana do Castelo, Lisboa, etc.) (Universidade do Porto, 2023). Dados referentes ao ano letivo 2020/2021 (em que o número total de inscrições foi de 411.995) destacam que o número de pessoas deslocadas no Ensino Superior foi de 119.887 (29.1%). Estes dados, aliados à entrada de estudantes de outros países no ensino superior (n = 55.321) representaram uma procura potencial por alojamento por parte de 175.208 estudantes. Por outras palavras, de todas as pessoas inscritas no Ensino Superior, estimava-se que potencialmente cerca de 42.5% precisasse de encontrar soluções de alojamento (Plano Nacional para o Alojamento no Ensino Superior, n.d.). 

Estes dados expressam uma realidade preocupante: uma grande quantidade de estudantes precisam de encontrar soluções de alojamento. Contudo, quais são as soluções de alojamento disponíveis para estas pessoas? As principais opções, com oferta predominantemente no setor público, são as residências de Ensino Superior geridas pelos serviços de ação social das próprias instituições. Esta opção é geralmente mais barata que as restantes e estima-se que, em 2021, permitiu a disponibilização de 15.324 camas. Contudo, a procura por esta opção é elevada e requer um processo rigoroso de candidatura onde são selecionadas prioritariamente as pessoas  que beneficiam de bolsas. Desse modo, nem todas as candidaturas são aceites, por exemplo, 60% das pessoas que disseram ter concorrido às residências dos serviços de ação social no Porto não tiveram vaga (DN/Lusa, 2022; Leiria, 2022; Lusa, 2022; Porto Canal/Agências, 2022; Direção-Geral do Ensino Superior (DGES), 2023; Plano Nacional para o Alojamento no Ensino Superior, n.d). 

Por outro lado, também devemos considerar outras opções de alojamento disponibilizadas enquanto alternativas de alojamento estudantil, tais como os alojamentos protocolados (por exemplo, disponibilização de camas em pousadas, hotéis, hostels, ou alojamentos locais), que representam 1271 camas disponibilizadas para estudantes, e as residências privadas estruturadas, que representam 7.500 camas (Plano Nacional para o Alojamento no Ensino Superior, 2021). Todavia, estas opções podem ser mais sensíveis a variações de preço (por exemplo, consoante a época do ano), o que pode representar um desafio para o alojamento estudantil. Efetivamente, se o número total de camas disponibilizadas pelas diferentes opções públicas e alternativas for somado (não incluindo a oferta através de quartos privados), a oferta total ronda as 24.095 camas. Assim, a oferta existente demonstra ser claramente insuficiente em comparação com a procura potencial total por alojamento estudantil (n = 175.208).

Por essa razão, uma opção cada vez mais popular é o arrendamento de apartamentos ou quartos privados. Dada a escassez de respostas suficientes para as pessoas estudantes que precisam, esta solução mais dispendiosa permite, até certo ponto, responder às suas necessidades emergentes. A título de exemplo, o índice de preços de alojamento estudantil informa que o preço médio por quarto em Portugal é de 337€, 425€ na cidade do Porto e 450€ na cidade de Lisboa (Observatório do Alojamento Estudantil, 2023) e, em muitos casos, a estes custos acrescem-se outros que são indispensáveis, como água e energia) (DN/Lusa, 2022; Leiria, 2022; Lusa, 2022; Porto Canal/Agências, 2022). 

Para além disso, em comparação com as alternativas anteriores, esta opção é sensível à volatilidade do mercado e é prática comum que o adiantamento do pagamento num número mínimo de meses seja pedido, exigindo mais em termos económicos do que outras alternativas. Estas não são as únicas adversidades associadas a esta solução. Um inquérito da Federação Académica do Porto (FAP) onde participaram 1325 estudantes (76% deslocados) revelou que 52% das pessoas se encontrava numa situação de arrendamento paralelo, isto é, a maioria constatou não ter qualquer contrato de arrendamento ou recibos de renda. Sem documentos que comprovem as dificuldades da população estudantil para suportar os custos associados à educação, não lhes é possível concorrer a apoios providenciados pelo Ministério do Ensino Superior. Esta situação torna-se mais alarmante quando 42% das pessoas matriculadas no Ensino Superior afirma fazer um grande esforço financeiro para manter o alojamento encontrado e 18% declara ponderar abandonar o Ensino Superior (DN/Lusa, 2022; Leiria, 2022; Lusa, 2022; Porto Canal/Agências, 2022).

A crise da habitação e o abandono escolar 

Estas condições sociais parecem conduzir o Ensino Superior português a um estado de precariedade e desigualdade social. De uma perspetiva mais individual, as condições precárias em que estudantes subsistem revelam um impacto significativo no seu desenvolvimento pessoal e académico. A taxa de abandono escolar é indissociável da conjuntura socioeconómica vigente, corroborando o impacto da recessão económica neste problema. Entre 2010 e 2012, a crise económica portuguesa agravou a frequência de casos de insucesso escolar e dropout em estudantes universitários (Fernandes & Lopes, 2016), o que revelou a emergência de medidas de prevenção. Em 2014, Portugal apresentou a taxa mais elevada de abandono escolar no Ensino Superior e a menor percentagem de estudantes com graduação, comparativamente a 27 países da União Europeia (OECD, 2014). Em complemento, no ano letivo de 2021/22, cerca de 10,8% dos estudantes abandonaram o Ensino Superior um ano após terem iniciado a licenciatura, valor que aumentou em  1,7%  durante a pandemia (InfoCursos, 2023).

O abandono escolar é um fenómeno complexo com uma etiologia multivariada e consequências que ultrapassam a formação académica, requerendo por isso ser abordado de uma perspetiva multidimensional. A interação entre fatores institucionais, individuais e o contexto económico, social e político deve ser considerada no modelo de análise e intervenção desta problemática (Lopes et al., 2023). Deste modo, com o objetivo de alertar e sensibilizar para as razões subjacentes a este problema, o Movimento Associativo Estudantil elaborou  “O guia de boas práticas no ensino superior” (2016) a partir dos parâmetros evidenciados por um estudo do Conselho de Reitores das Universidades Portuguesas (CRUP). Este documento sinaliza os principais motivos para o dropout: questões de ordem vocacional, insucesso escolar, perceção das dificuldades de empregabilidade e adversidades económicas (Movimento Associativo Estudantil, 2016). 

Em particular, o estudo exploratório de Ferreira e Fernandes (2015) constatou que os fatores financeiros foram os que mais contribuíram para o abandono académico. Neste estudo, os indivíduos universitários realçam a necessidade da aquisição da bolsa de ação social escolar e de recurso a empréstimos bancários a fim de suportar os valores das propinas e de outras despesas latentes à frequência do Ensino Superior (Ferreira & Fernandes, 2015). A atribuição de bolsa pode ainda reduzir significativamente a probabilidade de abandono, já que se evidenciou uma discrepância entre a percentagem de estudantes em licenciatura que abandonaram o ensino superior público com (4,2%) e sem (9,2%) a bolsa aceite, no ano letivo de 2011/12. No entanto, quando há atrasos na concessão desta, o seu impacto na redução do problema é praticamente nulo (Movimento Associativo Estudantil, 2016). Assim, aliadas a uma resposta insuficiente por parte dos serviços de Ação Social, as dificuldades económicas aumentam a probabilidade de as pessoas com menos recursos financeiros desistirem dos seus estudos.  

A crise da habitação e a saúde biopsicossocial

A Saúde e o acesso a cuidados de saúde não são excluídos do contexto, logo, a crise socioeconómica também levanta riscos emergentes neste aspeto (OPP, 2015). Assumindo uma abordagem da saúde como um estado de completo bem-estar físico, mental e social, verifica-se que os determinantes socioeconómicos restringem as escolhas dos indivíduos e a sua adesão a comportamentos pró-saúde (OPP, 2020). No que concerne à crise de alojamento que experienciamos, os obstáculos económicos para pagar a habitação podem estar relacionados com menores níveis de Saúde Física (por exemplo, hipertensão arterial e diabetes) e de Saúde Mental (como depressão e ansiedade) (Yates & Milligan, 2007; Swope, 2019).  Ainda, estas adversidades podem traduzir-se em dificuldades na manutenção dos locais de residência, resultando em habitações de baixa qualidade (por exemplo, com defeitos de estrutura), que acarretam riscos para a saúde física e psicológica dos seus moradores (Swope & Hernandez, 2019).

Nesse sentido, os fatores habitacionais como a acessibilidade económica (i.e., os preços dos alojamentos), o contexto em que a habitação está inserida e a insegurança habitacional (por exemplo, contratos temporários de arrendamento) também podem prejudicar o bem-estar das pessoas, levando ao aumento de ansiedade e stress (OPP, 2023). Este efeito é mais agravado em situações de vulnerabilidade (por exemplo, de pobreza) e em transições de fase de vida (por exemplo, na adultez jovem). Deste modo, é possível verificar que as adversidades de cariz económico são um dos principais preditores de fraca saúde na comunidade estudantil (Eisenberg et al., 2013), podendo intensificar o stress experienciado por esta (Jessop et al., 2019). Estudantes com preocupações financeiras estão, assim, mais propensos a sofrer distúrbios mentais e comprometimentos na saúde física em comparação com os restantes (Jessop et al., 2019). 

Reflexões  e Direções 

De facto, as atuais contingências sociais contribuem para o desenvolvimento de desigualdades sociais, assim como para o acréscimo de dificuldades de acesso ao Ensino Superior. Estas podem expressar-se, por exemplo, ao nível da escolha de curso e/ou instituição a frequentar (por exemplo, famílias em condições mais desfavorecidas terão mais dificuldades para suportar os custos associados à educação, optando pelo par curso-instituição que for mais acessível, mesmo que não seja o ideal) (Amaral et al., 2021; Sá et al., 2021). Assim, escolhas fundamentais que determinam o futuro dos jovens acabam por ser condicionadas por fatores que estes não conseguem diretamente controlar e que não dependem apenas da sua capacidade, esforço e potencial.

Em suma, o crescimento do Ensino Superior nas últimas décadas é notório. A acessibilidade ao mesmo aumentou e mais pessoas conseguem prosseguir os seus estudos durante mais tempo. Contudo, é também inequívoco que, atualmente, este se encontra desafiado pelas contingências sociais. A comunidade estudantil sente as dificuldades que o país vive e isso tem consequências negativas a curto prazo para as pessoas estudantes e a longo prazo para a própria educação. As diversas barreiras associadas à falta de alojamento, aos custos elevados, às más condições de arrendamento, entre outras, têm impacto na saúde de milhares de estudantes, influenciando as suas escolhas de vida e exacerbando as desigualdades sociais existentes. Diante desse cenário, urge a implementação de políticas públicas eficazes e de longo prazo para apoiar todos os membros da comunidade estudantil que necessitam de suporte. A necessidade de mudança é urgente e exige um compromisso genuíno por parte das instituições públicas e de ensino para a implementação de medidas eficazes para o alojamento da comunidade estudantil. Nesse sentido, levanta-se a seguinte questão: as próximas pessoas a ingressarem no ensino superior terão uma cama? 

Bibliografia

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    “Semana de 4 dias: A reforma do Ensino Superior Português”

    A Federação Académica do Porto (FAP) apresentou ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior um projeto-piloto que propõe a redução da carga horária de estudos do ensino superior em quatro dias de aulas por semana. Essa proposta idealiza a implementação do projeto no primeiro semestre do ano letivo de 2023/2024 , aplicável ao 2º, 3º e 4º ano das licenciaturas e mestrados integrados. Além dos benefícios para a prática de ensino-aprendizagem em Portugal, a proposta prevê a melhoria da saúde psicossocial e o desenvolvimento pessoal dos/as estudantes, na medida em que proporciona um maior equilíbrio entre as obrigações académicas e as necessidades pessoais.

    Com uma carga horária semanal média de 21 horas de aulas, Portugal está entre os países europeus com as cargas horárias mais elevadas, o que pode afetar negativamente a qualidade de vida dos estudantes e sua capacidade de aprendizagem. Além das extensas horas despendidas em sala de aula, os/as estudantes ainda necessitam concentrar muitas horas de estudo autônomo para o cumprimento de exigências das ECTS. Em comparação com outros países europeus, como França, Irlanda, Bélgica, Reino Unido, Suécia e Países Baixos que possuem menos carga horária de ensino em relação a Portugal, estes conseguem manter uma melhor colocação no Ranking Universitário Mundial de 2023(1), indicando que uma maior carga horária não confere necessariamente melhores resultados. Assim, torna-se fundamental repensar a estruturação do modelo atual do Ensino Superior em Portugal, como prevê a proposta apresentada pela FAP. 

    Embora ainda não sejam muito comuns, a semana de estudos de quatro dias em Universidades já é uma realidade(2)(3) e manifestações semelhantes à da FAP já foram apresentadas anteriormente(4). Estudos realizados em universidades comunitárias dos E.U.A, apontaram como benefícios da semana de quatro dias a maior atratividade para o recrutamento e manutenção de estudantes e professores, principalmente de trabalhadores-estudantes, aumento da produtividade e desempenho, melhoria no equilíbrio entre trabalho e vida pessoal e redução das despesas de deslocamento(5)(6)(7). Num estudo piloto realizado na Universidade Central de Washington, cerca de 80% dos professores e alunos apontaram uma maior qualidade de vida e eram a favor de permanecer com a semana de 4 dias após o estudo(8). 

    No entanto, há desafios e preocupações a serem considerados na implementação de uma semana de estudo de quatro dias. Uma má organização de horários e de distribuição de aulas podem dificultar a participação, o envolvimento e motivação, além de aumentar o stresse diário, reduzir o tempo familiar nos dias da semana e gerar conflitos de horários de trabalho remunerado e não remunerado (5)(6). Fins de semana prolongados podem ser desafiadores para aqueles que não têm a opção de viajar ou ir para casa, podendo gerar isolamento e deterioramento da saúde mental para algumas pessoas. Assim, é fundamental avaliar cuidadosamente os aspectos que possam ser desafiadores para a implementação do modelo nas Instituições de Ensino Superior Portuguesas (IES).

    O interesse pela aplicação de uma semana de 4 dias não é restrito à comunidade académica. No contexto organizacional, os benefícios da semana de 4 dias são notáveis. Estudos pilotos realizados nos EUA, Irlanda e Reino Unido (9) demonstraram que uma semana de trabalho de 4 dias teve efeitos positivos a nível organizacional, na produtividade, desempenho, rendimentos, rotatividade e inovação, sendo que em 91% dos casos, as empresas optaram por manter essa medida após o período piloto. Os benefícios para os funcionários também parecem positivos, sendo que 73% dos trabalhadores relataram maior satisfação com seu tempo, 71% menos esgotados, 39% menos stressados e 54% com menos emoções negativas. Estudos longitudinais realizados nos Estados Unidos e na Islândia (10) e estudos realizados no Japão (11) e Irlanda (12) também encontraram efeitos positivos no bem-estar e produtividade dos trabalhadores. A redução da carga horária laboral também permite uma divisão mais igualitária do trabalho remunerado e do trabalho doméstico e de cuidado familiar entre pares, além de contribuir para a sustentabilidade ao reduzir a necessidade de deslocações ao local de trabalho e a pegada de carbono da organização (13). 

    Paralelamente, a comunidade académica do ensino superior português está a viver acentuadas dificuldades psicológicas (14) e socioeconómicas (15). O contexto atual torna prevalente a presença de stressores adicionais (crise habitacional, aumentos da taxa de inflação, sequelas causadas pela pandemia COVID-19, …), que despoletam consequências como exaustão, burnout, depressão, ansiedade e perda de controlo entre os estudantes (14)(16). Assim sendo, apontamos a necessidade de tentar colmatar os desafios e necessidades dos/as estudantes. O projeto-piloto sugerido pela FAP pretende atuar sobre alguns destes stressores, nomeadamente a sobrecarga horária e trabalho exigido pelos ECT’s. Os desafios existem e novas medidas devem ser implementadas. A FAP apresenta uma proposta sólida, que pode ser um ponto de partida importante para a implementação do modelo no país. Contudo são necessárias estratégias complementares direcionadas a outros fatores propulsores do deterioramento do bem-estar psicológico da comunidade estudantil, nomeadamente um investimento nos Serviços de Apoio Psicológico, na crise habitacional e na inserção dos jovens no mercado laboral 

    Tendo em conta os resultados dos estudos supramencionados e a recente aprovação do programa-piloto “Semana de Quatro Dias” para as entidades empregadoras de Portugal (17), consideramos relevante ponderar a implementação de uma medida dentro dos mesmos parâmetros nas IES, como proposto pela FAP.

    Posto isto, levanta-se a questão, será que a semana de 4 dias pode contribuir para a reforma do ensino superior português?

    Bibliografia

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